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quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Dia-crónicas (Viagens na Minha Era)





Onésimo Teotónio de Almeida é escritor e professor na Brown University em Providence (Rhode Island-EUA) mas tem as suas origens na ilha de S. Miguel (Açores). É um escritor que reflecte sobre a experiência da emigração, inventor de palavras e contador de “petites histoires drôles”. É por isso que de vez em quando retorno ao seu livro de crónicas (ou “dia-crónicas”) Viagens na minha era. Umas histórias são mais sérias, outras mais divertidas e ligeiras. É este o caso da que vou partilhar hoje convosco e que passo a transcrever:

«Deus ex plastica

Os Hofmann’s (aparentam) ser felizes à sua maneira e, além disso, têm sempre estórias.
A última foi do Jeffrey. Sete anos, embora nos olhos pareça ter muitos mais. Entretinha-se ele a saltitar canais na TV num domingo de manhã e demorou-se um pouco a ouvir um desses pregadores inflamados. Era um negro a galvanizar a sua congregação, como só eles sabem fazer:
__ My brothers and sisters... (e traduzo o resto) Deus não é homem!...
Em coro, a assembleia:
__ Yééééé!... Aleluia!...
O preacher:
__ Mas Deus, my brothers and sisters, também não é mulher!…
Mais aleluias e yééééés entusiasmados. De novo o pregador:
__ Deus, my brothers and sisters, não é branco!…
Redobra de intensidade a assembleia em aprovação, para ouvir logo de seguida outra tirada do clérigo:
__ Mas Deus, my brothers and sisters, também não é negro!…
E enquanto os aleluias retiniam na sala, o Jeffrey comentava para o pai:
__ Já sei! Deus é o Michael Jackson!»

PS: Dedico esta “estória” à magnífica professora – quase titular - (e minha amiga) Filipa Carvalho. Diz que gosta muito das coisas que escrevo! Yééééé!... Aleluia!...

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tem a palavra...

O facto de ter nascido em Dezembro trouxe-me vários dissabores: um, de contornos materialistas, a prenda dos anos vinha pelo Natal; outro, de carácter astrológico, fiquei, para sempre, um ser de sagitário; e, o mais grave, de dimensões verdadeiramente trágicas, entrei para a escola quase um ano depois das outras crianças, com, exactamente seis anos e dez meses.
A bem dizer, a perda só foi grande porque foram vários meses de vida sem ler.
Esse tempo de privação criou-me um trauma ainda não ultrapassado, condicionando toda a minha existência: desde que fui iniciada na ciência da decifração das letras, um processo de deslumbramento que durou dois meses, nunca mais me separei dos livros.
Recordo a primeira paixão, Os cinco salvaram o tio, da Enid Blyton. Foi uma aventura avassaladora, de tão intensa, que me levou à fuga da casa dos meus pais; em cada página lida eu era também parte dos cinco e estava com eles na ilha, na casa da Zé a comer scones, a passear Tim, o cão, ou a descobrir bandidagens perigosas. E os meus pais nunca deram pela minha falta, mas certo é que saltei de aventura em aventura, viajei para outros países, para locais fantásticos, até fui ao fundo do mar e entrei dentro de um vulcão, com o Júlio Verne; vivi, não um Amor de Perdição, mas vários com Camilo Castelo Branco, e recuei a tempos históricos com Júlio Dinis.
Claro que não saí ilesa, hoje tenho a casa atabalhuada de livros, não chegam as estantes, estão no chão, em caixas, são daqueles amores com os quais tropeçamos e embirramos, mas dos quais não nos separamos. Eu já tentei tudo: decidi não comprar mais livros, ir só à biblioteca, uma relação perfeita, cada um na sua casa, eles sempre disponíveis p’ra mim, à distância de uma requisição; contudo o vício é grande, em poucas semanas voltei a cair na tentação ... e a comprar. Precisava de um relacionamento mais estável, com partilha de espaço... Depois, decidi emprestar ao desbarato, sem registar a quem emprestava e sem pedir devolução. Novo erro, fiquei com mais espaço em casa e com menos saúde no fígado, retorcia-me com raiva dos amigos que usurparam os meus amores.
A solução parece ser que me assaltem a casa, me levem os caixotes e despejem as prateleiras, desapareçam com as páginas e páginas de ácaros nacionais e estrangeiros, de romance, poesia, ensaio, teatro e sei lá que mais. Levem-me os livros todos! Para, então, ter espaço livre para mais.

Professora Maria João Silvestre