quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Tem a palavra...

O facto de ter nascido em Dezembro trouxe-me vários dissabores: um, de contornos materialistas, a prenda dos anos vinha pelo Natal; outro, de carácter astrológico, fiquei, para sempre, um ser de sagitário; e, o mais grave, de dimensões verdadeiramente trágicas, entrei para a escola quase um ano depois das outras crianças, com, exactamente seis anos e dez meses.
A bem dizer, a perda só foi grande porque foram vários meses de vida sem ler.
Esse tempo de privação criou-me um trauma ainda não ultrapassado, condicionando toda a minha existência: desde que fui iniciada na ciência da decifração das letras, um processo de deslumbramento que durou dois meses, nunca mais me separei dos livros.
Recordo a primeira paixão, Os cinco salvaram o tio, da Enid Blyton. Foi uma aventura avassaladora, de tão intensa, que me levou à fuga da casa dos meus pais; em cada página lida eu era também parte dos cinco e estava com eles na ilha, na casa da Zé a comer scones, a passear Tim, o cão, ou a descobrir bandidagens perigosas. E os meus pais nunca deram pela minha falta, mas certo é que saltei de aventura em aventura, viajei para outros países, para locais fantásticos, até fui ao fundo do mar e entrei dentro de um vulcão, com o Júlio Verne; vivi, não um Amor de Perdição, mas vários com Camilo Castelo Branco, e recuei a tempos históricos com Júlio Dinis.
Claro que não saí ilesa, hoje tenho a casa atabalhuada de livros, não chegam as estantes, estão no chão, em caixas, são daqueles amores com os quais tropeçamos e embirramos, mas dos quais não nos separamos. Eu já tentei tudo: decidi não comprar mais livros, ir só à biblioteca, uma relação perfeita, cada um na sua casa, eles sempre disponíveis p’ra mim, à distância de uma requisição; contudo o vício é grande, em poucas semanas voltei a cair na tentação ... e a comprar. Precisava de um relacionamento mais estável, com partilha de espaço... Depois, decidi emprestar ao desbarato, sem registar a quem emprestava e sem pedir devolução. Novo erro, fiquei com mais espaço em casa e com menos saúde no fígado, retorcia-me com raiva dos amigos que usurparam os meus amores.
A solução parece ser que me assaltem a casa, me levem os caixotes e despejem as prateleiras, desapareçam com as páginas e páginas de ácaros nacionais e estrangeiros, de romance, poesia, ensaio, teatro e sei lá que mais. Levem-me os livros todos! Para, então, ter espaço livre para mais.

Professora Maria João Silvestre

4 comentários:

Anónimo disse...

É para já, colega Maria João! Onde é que moras? Já estou a caminho… [:)]
Agora a sério: gostei muito de ler este desabafo com sabor a memórias de infância. Os livros também são a minha perdição e continuo a comprá-los quase compulsivamente. Mas o grave mesmo é que depois, por razões óbvias, não os leio. Não os leio logo, claro. Ficam ali assim a olhar para mim, de sorriso matreito e eu a olhar para eles e a pensar “que parvo que sou, porque te fui comprar se não tenho tempo para vos ler?”.
Um desses livros disse-me, num dia de alucinação espiritual, que não me preocupasse com isso, pois quando me reformasse e ainda tivesse vista e cabeça minimamente funcional, ele estaria ali disponível para ser consumido até à medula. Eles estão sempre ali…
Um abraço de um colega um pouco disfuncional
Fernando M. Ferreira

Prof. Dália Santos disse...

Adorei esta crónica... fez-me recordar o meu próprio percurso (nasci em Janeiro) e as minhas leituras! Acima de tudo, fez com que me sinta "normal" pois também eu luto há muito contra esta doença (incurável) de comprar mais e mais livros. Também eu os tenho em caixotes, nas estantes, na minha casa, em casa da minha mãe!
O que me tranquiliza é saber que invisto num património que me faz ser mais feliz e completa. Adoro partilhar a casa com os livros e "viajar" com eles por este e por outros mundos, neste e noutros tempos. Eles permitem-me ser rainha, fada, assassina... Parabéns por esta crónica! Parabéns à equipa de coordenação pelo blogue e por fazerem da Biblioteca um espaço "VIVO" e "POVOADO".
Dália Santos

Pipa disse...

Sofremos todos do mesmo "mal"!

Artur Coelho disse...

Podes sempre cavar umas caves debaixo de tua casa, mas cuidado! Que segredos inomináveis lá poderás encontrar...?